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H. Grangeia assinalado a encarnado |
Já
falei aqui do Henrique Grangeia.
A
fotografia que ilustra o texto foi “picada” no blog Voando em Moçambique, ao
qual peço desculpa pelo atrevimento.
O
Henrique Grangeia foi, durante muitos anos, o delegado da SAGAL em Balama e,
portanto, nosso vizinho. Por isso, eram bastante frequentes as visitas
recíprocas, as quais o Turita e eu apreciávamos sobremaneira porque a presença
do Henrique era a garantia de grandes gargalhadas e numerosas loucuras.
Era
um aficionado da Festa Brava e mantinha viva, mesmo “enterrado” nos confins de
Cabo Delgado, a chama da sua paixão taurina, sabia de cor as biografias dos grandes matadores, demonstrava como se faziam chicuelinas ou passes de peito, veronicas e gaoneras, o que eram tremendismos, etc..
Entre
os jornais de Lisboa, de datas arqueológicas e amarelecidos pelo passar dos
tempos mas religiosamente preservados – já veremos porquê – havia um ror de
revistas taurinas espanholas, gastas de tanto serem manuseadas.
Guardava,
também, um vistoso traje de luces (dourado
e bordado a vermelho, (se esta minha memória móvel me não atraiçoa) que, em
ocasiões mais “solenes” ou acessos mais pungentes de saudade, era envergado
pelo criado (cujo nome, irritantemente, me escapa) que servia à mesa, ao som de
paso
dobles e seguidillas.
Nessas
ocasiões, era de regra que el patron só se dirigisse ao
serviçal em castelhano, o que provocava inevitáveis e alvoraçadas confusões
quando se tratava de acorrer aos caprichos (por vezes estapafúrdios) do Henrique Grangeia.
Na
falta de touros de lide ou garraios adequados, o H. Grangeia toureava, com majestosos
floreios do capote e arriscados passes de muleta, no quintal transfigurado em cenário de Las Ventas em Madrid, um velho bode, o Elias, animal
de tamanho apreciável para a espécie mas de lide difícil pela tendência para
ora se meter em tábuas ora investir, de cornos não afeitados, com um salto
súbito que, não raras vezes, punha em perigo faena e maestro.
Um
outro ritual que o Henrique acarinhava era o matabicho.
Na
noite anterior, avisava o criado da hora a que devia ser acordado.
Ao
chegar o momento, sobraçando uma pilha dos velhos jornais de que falei acima,
alguns de muitos e muitos anos antes, o criado postava-se à janela do quarto e
desatava a pregoar, no tom e com a “música” que lhe fora diligentemente
ensinada, “Olh’ó Século, olh’ó Diário!..
traz a desgraçadinha….”. O Grangeia escolhia, então, o periódico que nessa
manhã lhe ocorresse e, sentado à mesa do matabicho,
de roupão de seda, acompanhava solenemente a refeição com uma atenta leitura da
gazeta.
Durante
um jantar que ficou célebre, na varanda da casa de Balama, o Henrique Grangeia
decidiu trocar de lugar e de funções com o seu dedicado empregado. Desconfiado sobre
o que se seguiria, este só por insistentes ordens do patrão, que já estavam
próximas da ameaça, acabou por se sentar ao topo da mesa, onde ouviu as
instruções: durante o jantar, era ele o patrão e o patrão o serviçal. De nada
valeram objecções, tentativas de recusa, pedidos angustiados.
Montado
o enredo de opera bufa, iniciou-se o repasto.
O
“patrão por um jantar” era instado a
comportar-se como tal e, a pouco e pouco, foi entrando no jogo, conversando
cada vez mais descontraído e já a imitar os modos e os maneirismos do Henrique.
Finalmente,
depois de servir os convidados, este aproximou-se do rapaz e ofereceu-lhe a
travessa.
Com
firmeza, irritação e um gesto desabrido, o moleque gritou:”Ó preto ordinário, não sabes que tem que servir pelo lado direito,
cabrão?!”.
Mais
tarde, a lenda contava (como se sabe “quem conta um conto…”) que o Henrique
Grangeia tinha despejado a travessa pela cabeça do rapaz abaixo.
Não
é verdade; foi a gargalhada que deu que desequilibrou a travessa cujo conteúdo,
por isso, escorreu, facto, para a cabeça do “patrão” disciplinador…