31.10.11

Citação VII



Quanto mais algo é inteligível, mais facilmente se retém, e, ao contrário, quanto menos, mais facilmente o esquecemos. Por exemplo, se eu transmitir a alguém uma porção de palavras soltas, muito mais dificilmente as reterá do que se apresentar as mesmas palavras em forma de narração. Reforçada também sem auxílio do intelecto, a saber, pela força mediante a qual a imaginação ou o sentido a que chamam comum é afectado por alguma coisa singular corpórea. Digo singular, pois a imaginação só é afectada por coisas singulares. Com efeito, se alguém ler, por exemplo, só uma novela de amor, retê-la-á muito bem enquanto não ler muitas outras desse género, porque então vigora sozinha na imaginação; mas, se são mais do género, imaginam-se todas juntas e facilmente são confundidas.

Digo também corpórea, pois a imaginação só é afectada por corpos. Como, portanto, a memória é fortalecida pelo intelecto e também sem ele, conclui-se que é algo diverso do intelecto e que não há nenhuma memória nem esquecimento a respeito do intelecto visto em si. 
O que será, pois, a memória? Nada mais do que a sensação das impressões do cérebro junto com o pensamento de uma determinada duração da sensação; o que também a reminiscência mostra. Realmente, nesta a alma pensa nessa sensação, mas não sob uma contínua duração; e assim a ideia desta sensação não é a própria duração da sensação, quer dizer, a própria memória. Se, porém, as próprias ideias sofrem alguma corrupção, veremos na filosofia. E se isso parece a alguém muito absurdo, bastará para o nosso propósito que pense ser tanto mais facilmente retida uma coisa quanto mais for singular, como se vê do exemplo da novela que acabamos de dar. Além disso, quanto mais uma coisa é inteligível, mais facilmente é retida. Logo, não podemos deixar de reter uma coisa sumamente singular e somente inteligível. 

 Espinoza, Tratado da Correcção do Intelecto

30.10.11

Beto & Lelo


Os Rocha: o Beto e o Lelo.
A fotografOia deve ter sido em meados dos anos 40.
Pouco mais velhos seriam quando ganharam a minha eterna admiração pela persistência com que infernizavam a vida da Tia Irene (e Deus e todos nós sabemos como era difícil exasperá-la...): em Porto Amélia, sentados à mesa, um de cada lado da Tia Irene que se esforçava por obrigá-los a engolir uma colher de sopa; cada vez que a dita colher era introzida na boca de um deles, o outro cuspia o conteúdo da colherada anterior que tinha mantido, irredutível, na boca. Quando a Mãe se virava para este último, era a vez de o outro irmão expelir a sua colherada.
Entre gritos, alguns safanões e no meio de um cenário apocaliptíco, a Tia Irene acabava por desistir.
Não sei se alguma vez tive coragem para seguir o heróico exemplo mas, se o fiz, foi um acto isolado e nunca repetido.
Os meus tios Irene e Aires Rocha e os seus dois querubins viviam ao fundo da avenida principal de Porto Amélia.
O Tio trabalhava então, se a memória me não falha, nos escritórios do Joâo Ferreira dos Santos, com um familiar seu (tio? Primo?), o senhor Acácio. 

Amor fraternal 3


A foto é de 1954. A localização é indeterminada mas pode ser a então chamada "Metrópole", visto que nesse ano fui, finalmente, resgatado do colégio de jesuítas em que penei, sofrendo dois gélidos invernos, castigos corporais e psicológicos, terríveis saudades. Assim, grande parte desse ano foi passado em Portugal. Outra pista: o traje "apessoado" dos dois rapazolas.



As características dos retratados mantêm-se: alguma solenidade na postura do primogénito, a beleza da mana Lena, a doçura enganadora do terrível mano mais novo.

28.10.11

Montepuez na Grande Guerra - III


O General von Lettow, que comandou as tropas alemãs vindas do Tanganika, então integrado na Deutsch - Ostafrika (África Oriental Alemã), que invadiram Moçambique e cujos dados biográficos serão objecto de um post específico, foi o mais notável militar alemão da sua geração, tendo combatido no Extremo Oriente, em África e na Europa.



Paul Emil von Lettow-Vorbeck
 Um junker prussiano, imbuído ainda do "espírito dos cavaleiros teutónicos" que terminou, exactamente, com a Guerra de 14-18 e que já esteve completamente ausente na II Guerra Mundial, foi, além disso, um guerrilheiro cujas acções e iniciativas não ficam atrás das de Giap ou "Che" Guevara.
Encontrei no Youtube este interessante vídeo onde von Lettow-Vorbeck aparece várias vezes e que, segundo julgo, mostra, numa das gravuras da época, a travessia do Rovuma.

27.10.11

Citação VII

Ao contrário do que muita gente julga, o passado não era mais fértil em acontecimentos do que o presente. Se assim parece, é porque, ao recordarmos os tempos idos, amalgamamos coisas que sucederam com vários anos de intervalo, e porque são bem escassas as memórias que nos chegam genuinamente virgens. É em grande medida devido aos livros, filmes e reminiscências vindas a lume entretanto que prevalece agora a memória de que a guerra de 1914-18 possui um carácter tremendo, épico, que falta à guerra actual.


"Livros &  Cigarros"
George Orwell (1940)
Ed. port. Antígona

Henrique Grangeia

H. Grangeia assinalado a encarnado

Já falei aqui do Henrique Grangeia.
A fotografia que ilustra o texto foi “picada” no blog Voando em Moçambique, ao qual peço desculpa pelo atrevimento.
O Henrique Grangeia foi, durante muitos anos, o delegado da SAGAL em Balama e, portanto, nosso vizinho. Por isso, eram bastante frequentes as visitas recíprocas, as quais o Turita e eu apreciávamos sobremaneira porque a presença do Henrique era a garantia de grandes gargalhadas e numerosas loucuras.
Era um aficionado da Festa Brava e mantinha viva, mesmo “enterrado” nos confins de Cabo Delgado, a chama da sua paixão taurina, sabia de cor as biografias dos grandes matadores, demonstrava como se faziam chicuelinas ou passes de peito, veronicas e gaoneras, o que eram tremendismos, etc..
Entre os jornais de Lisboa, de datas arqueológicas e amarelecidos pelo passar dos tempos mas religiosamente preservados – já veremos porquê – havia um ror de revistas taurinas espanholas, gastas de tanto serem manuseadas.
Guardava, também, um vistoso traje de luces (dourado e bordado a vermelho, (se esta minha memória móvel me não atraiçoa) que, em ocasiões mais “solenes” ou acessos mais pungentes de saudade, era envergado pelo criado (cujo nome, irritantemente, me escapa) que servia à mesa, ao som de paso dobles e seguidillas.
Nessas ocasiões, era de regra que el patron só se dirigisse ao serviçal em castelhano, o que provocava inevitáveis e alvoraçadas confusões quando se tratava de acorrer aos caprichos (por vezes estapafúrdios)  do Henrique Grangeia.
Na falta de touros de lide ou garraios adequados, o H. Grangeia toureava, com majestosos floreios do capote e arriscados passes de muleta, no quintal transfigurado em cenário de Las Ventas em Madrid, um velho bode, o Elias, animal de tamanho apreciável para a espécie mas de lide difícil pela tendência para ora se meter em tábuas ora investir, de cornos não afeitados, com um salto súbito que, não raras vezes, punha em perigo faena e maestro.
Um outro ritual que o Henrique acarinhava era o matabicho.
Na noite anterior, avisava o criado da hora a que devia ser acordado.
Ao chegar o momento, sobraçando uma pilha dos velhos jornais de que falei acima, alguns de muitos e muitos anos antes, o criado postava-se à janela do quarto e desatava a pregoar, no tom e com a “música” que lhe fora diligentemente ensinada, “Olh’ó Século, olh’ó Diário!.. traz a desgraçadinha….”. O Grangeia escolhia, então, o periódico que nessa manhã lhe ocorresse e, sentado à mesa do matabicho, de roupão de seda, acompanhava solenemente a refeição com uma atenta leitura da gazeta.
Durante um jantar que ficou célebre, na varanda da casa de Balama, o Henrique Grangeia decidiu trocar de lugar e de funções com o seu dedicado empregado. Desconfiado sobre o que se seguiria, este só por insistentes ordens do patrão, que já estavam próximas da ameaça, acabou por se sentar ao topo da mesa, onde ouviu as instruções: durante o jantar, era ele o patrão e o patrão o serviçal. De nada valeram objecções, tentativas de recusa, pedidos angustiados.
Montado o enredo de opera bufa, iniciou-se o repasto.
O “patrão por um jantar” era instado a comportar-se como tal e, a pouco e pouco, foi entrando no jogo, conversando cada vez mais descontraído e já a imitar os modos e os maneirismos do Henrique.
Finalmente, depois de servir os convidados, este aproximou-se do rapaz e ofereceu-lhe a travessa.
Com firmeza, irritação e um gesto desabrido, o moleque gritou:”Ó preto ordinário, não sabes que tem que servir pelo lado direito, cabrão?!”.
Mais tarde, a lenda contava (como se sabe “quem conta um conto…”) que o Henrique Grangeia tinha despejado a travessa pela cabeça do rapaz abaixo.
Não é verdade; foi a gargalhada que deu que desequilibrou a travessa cujo conteúdo, por isso, escorreu, facto, para a cabeça do “patrão” disciplinador…

A mana Lena e os penteados dos anos 60

Não sei porquê mas lembra-me o Tolentino.

26.10.11

Montepuez na Grande Guerra - II


Portugal tinha abandonado a neutralidade logo em 1914 mas a Alemanha só declarou guerra em 1916.
Logo nesse ano, as tropas portuguesas chegam a invadir o território da África Oriental Alemã, atravessando o Rovuma, mas mantêm-se aí apenas por cerca de três meses, entre Setembro e Novembro.
Askari das tropas alemãs na Guerra 14-18
Em resposta, uma força alemã, conhecida como “Destacamento Stuemer”, invadiu Moçambique entre Abril e Setembro de 1917.
A segunda invasão, entre Novembro de 17 e Abril de18, o General von Lettow, comandante das tropas alemãs, atravessou novamente o Rovume e entrou em Moçambique com uma força da Schutztruppe (Força Auxiliar essencialmente composta de locais designados Askari, o correspondente aos cipaios das colónias portuguesas).
Uma coluna, a célebre “Colluna Wahle, comandada pelo General com o mesmo nome, passou o Lugenda e estabeleceram  uma ocupação durável de toda a região compreendida entre Muembe, Chirumba, Luambala, Namuno, Mualia, Montepuez e o rio Lúrio, em todo o período entre Novembro de 1917 e Abril de 1918.
Mualia, de que já falei AQUI, era a sede do Cocelho do Medo (Meto) e correspondia, certamente, ao Natupile, a "machamba" do meu Pai.
A resistência portuguesa foi valorosa, por vezes heróica, mas incapaz de resistir ao poderio alemão dados o seu deficiente treinamento, os poucos recursos de armamento, a inferioridade táctico-militar mas também (e talvez sobretudo), como nota René Pelissier 
, pela hostilidade das populações e dos potentados locais, o que embacia um dos mais acarinhados e persistentes mitos ainda presentes na sociedade portuguesa, o da "preferência" dos colonizados pela "paternal" dominação portuguesa, em contraposição à "cruel" acção colonizadora das outras potências.
Esta circunstância, a forma amigável como as populações da região acolhem os alemães, é também mencionada por Milton Correia (2) que refere "a agradável recepção política africana para os alemães".


(1) R. Pelissier, Hitória de Moçambique: formação e oposição 1854-1918, II volume
(2)Milton Correia, Norte de Moçambique, 1886-1918:soberania,dominaçãoeAdministraçãocolonial


25.10.11

Amor fraternal 2




Um carimbo do fotógrafo no verso da fotografia permite datá-la: Outubro de 1953.

O primogénito tinha, agora, dez inocentes (?) primaveras.
A mana continuava linda e grácil mas sob o semblante ainda angélico do benjamim, começava a despontar a natureza de "mafarrico" que provocava os frequentes "ora o diabo do garoto!". 
"Ah! diabo, diabo..."

Montepuez na Grande Guerra - I

Fonte: Ilustração Portuguesa

Durante a I Guerra Mundial, as forças alemãs, comandadas pelo futuro General Paul Emil von Lettow-Vorbeck, invadiram o território do Norte de Moçambique a partir da então colónia alemã do Tanganika e chegaram a ocupar Montepuez.
É sobre esse episódio que pretendo elaborara uma série de pequenos apontamentos, sem pretensões historiográficas ou preocupações de rigor científico e recorrendo a fontes muito diversas.
As motivações portuguesas para participar na Guerra, prendiam-se, como é consensual entre os historiadores, com o receio de que se viesse a concretizar, nos futuros Tratados de Paz, a divisão dos seus territórios coloniais entre outras potências, possibilidade que  foi muitas vezes aventada no período que se seguiu à Conferência de Berlim (1884/1885) que organizou a ocupação de África pelas potências coloniais e que resultou num traçado de fronteiras artificiais, sem qualquer respeito pela História ou pelos povos africanos, vindo a ser um dos factores que estão na raiz do espectro de guerras e instabilidade que continuam a assolar aquele continente.
O ambiente político interno em Portugal, que vivera a Revolução Republicana apenas quatro anos antes, o estado de preparação do País e do Exército para um conflito que viria a ser o primeiro em que a tecnologia seria decisiva, a popularidade da beligerância, estão amplamente documentados e foram muito exaustivamente tratados pela historiografia.
Mas a Guerra que se desenrolou em África e a intervenção portuguesa nos combates contra a Alemanha teve características especiais.
Só me referirei a acontecimentos, factos ou personalidades que estejam, de uma forma ou de outra, relacionados com Montepuez ou, vá lá, com o Norte de Moçambique.

24.10.11

O Chevrolet


Os progenitores, orgulhosos possuidores de um Chevrolet, a única marca de automóveis cantada por Fernando Pessoa.

Citação VI

Áfricas


Não se faz da memória um novo amor,
por isso nada em mim te procurava.
Não te sonhei sequer quando criança
teu nome não brilhava como estrela.


Porque amor é só feito de surpresa,
mais nos agarra quando nunca o vimos.
Para mim teu país no maoa era
uma confusa mancha de incerteza.


A guerra, a solidão, fim do Império,
vieram dar o rosto da tragédia
ao que eu nunca sonhara como história


que fosse pessoal. Coube-nos todo
este peso da História e esta surpresa
de te reconhecer como eu respiro.


Luís Filipe Castro Mendes
(Poesia Reunida, 1999)



23.10.11

Jacintinho e pai Jacinto







Tratava-se, certamente, de uma ocasião solene, tendo em conta os atavios muito cuidados dos gandulos da primeira fila.
O peso percentual da “tribo” é esmagador: toda a fila da frente (da esquerda para a direita, este que vos escreve, o primo Lelo, o Turita de solenes suspensórios bávaros, os primos Augusto Zé e Beto); entre as meninas, à esquerda, uma jovem ainda não identificada com segurança (já me foram sugeridos os nomes de Celeste ou Sara), a minha prima Fernanda, uma face escondida que deve ser a minha irmã Lena, a minha prima Teresa Ferreira (irmã do Augusto Zé), atrás dela, altíssima, a Laurinda, que havia de ser também minha prima depois de casar com o Abraãozinho, e a prima Belita com um bebé (não identificado) ao colo.
Também à esquerda, ostentando uma conspícua boina basca, o Jacintinho.
O Jacintinho era da nossa criação e, quando muito, um nadinha mais velho do que o Beto. Como se constata na foto, era menino de impressionante envergadura, qualidade que acompanhava uma invulgar falta de jeito para as actividades que exigiam destreza ou alguma violência. Tímido e sensível, o Jacintinho dificilmente se libertava da redoma em que a Mãe o mantinha. Hoje, diríamos que era uma criança emotiva e de lágrima fácil; na altura, preferíamos o epíteto de “chorão”.
Herdara a compleição hercúlea do Pai Jacinto.
Deste último dependia, em grande medida, a iluminação eléctrica de Montepuez, uma vez que, sendo electricista, tinha a seu cargo o funcionamento e manutenção do gerador.
O senhor Jacinto, tinha, ao contrário do seu rebento, uma voz tonitruante correspondente ao tamanho do corpanzil e era muito, mesmo muito desconfiado.
Sendo a “sua” iluminação pública ainda muito incipiente e escassa, havia energia suficiente para o interior das casas mas o exterior mantinha-se na escuridão (que, em África, pode ser profunda).
Rezam as crónicas que, sentado à mesa do jantar, o senhor Jacinto soltava, de quando em quando e a intervalos irregulares, um grito, audível a grande distância no silêncio (que, em África, pode ser profundo como a escuridão...) : “ENTRE!”, era o insólito convite que o grito transmitia.
Continuam a rezar as crónicas que, inicialmente, este hábito criara na Mãe e no inocente Jacintinho alguma perplexidade e até medo); à terceira ou quarta vez, a D. Isolina inquiriu das razões daquele procedimento: “Ó homem, não está ninguém lá fora; se estivesse, batia à porta ou chamava…”.
O senhor Jacinto terá respondido com um tom explicativo: “Cala-te, mulher! Podem estar lá fora a escutar à porta ou a espreitar pela janela. Assim se gritar, pensam que nós os ouvimos, ficam envergonhados e vão-se embora!”.

22.10.11

A primeira bicicleta



Era uma "Hércules" prateada e tinha sonhado com ela durante tempos infindos.
Ao fim de alguns dias, não tinha travões; nada que a sola do sapato (ou do próprio pé descalço) firmemente aplicado no pneu traseiro não pudesse remediar:
A foto foi tirada no Natupile, como indica a linha da serra, ao fundo:

Mas foi em Montepuez que fiz a primeira vítima: descia a toda a velocidade (e sem travões) vindo Nepara: À falta da campainha, recorria aos aos gritos de aviso para aconselhar alguma prudência a quem estivesse na minha imparável trajectória.
Um adulto mais imprudente, ou mais confiante no meu domínio da máquina, manteve imperturbável o seu caminho. A pressão da sola sobre o pneu traseiro era insuficiente para parar a "ginga" e só acentuava o descontrolo.
O inevitável aconteceu e a colisão deu-se!
Bicicleta para um lado, ciclista para o outro, vítima também no chão.
Ainda tentava determinar se havia ferimento mais grave quando me senti puxado por baixo do braço para ser levantado e levei uma sonora bofetada do transeunte atropelado.
Não foi tanto a dor física como a enorme humilhação.
Nunca esqueci essa bofetada e nunca perdoei ao agressor, apesar de várias tentativas da parte dele para fazer piada sobre o incidente, em implícitos pedidos de desculpa.
Continua a ter direito ao meu eterno ódio.

E vão mais dois



Esta foi captada na mesma ocasião que a anterior; só me ensanduicharam entre o Beto e o Lelo.

21.10.11

Amor fraternal...




Note-se a preocupação protectora do primogénito, insuspeito, naquela altura, de escrevinhador em blogs.
A mana Marilena já deixava transparecer a beleza grácil que viria a fazer dela uma das mais requestadas donzelas de Cabo Delgado e arredores.
Já o semblante angélico do caçula estava longe de anunciar o Turita do futuro, terror de Balama, ás das picadas, flagelo dos opressores (ia escrever professores) e protector dos mais fracos.

A foto deve datar do fim dos anos 40.

Jamal

O Jamal era um camionista ("transportador") da Sagal, um negro alto, que fazia jus ao nome, que significa "belo" em árabe.
Lembro-me dele, imponente, na altíssima cabine do enorme Thornycroft, um camião que era um gigante das estradas e cuja fealdade aumentava a sensação de potência que transmitia..
O Jamal não tinha, muito provavelmente, frequentado a escola mas era dotado de especial curiosidade cultural que o meu Pai muito estimava e estimulava, emprestando ao Jamal revistas e livros e mantendo com ele longas conversas.
A sua profissão e itinerância e os contactos que que ia mantendo com comerciantes, tornavam-no, também, um bom julgador dos sinais da economia, numa fase ainda muito primitiva do sistema de trocas e do marketing incipiente que os comerciantes locais faziam sem o saber, tal como Monsieur Jourdain em relação à prosa.
A determinada altura, um novo comerciante estabeleceu-se "na praça" e a natural curiosidade dos habitantes sobre os efeitos da abertura duma nova loja e sobre a forma como decorria o negócio, levou o Meu Pai a perguntar ao Jamal:
-"Então, como vai o negócio de Fulano?"
O Jamal pensou um pouco e respondeu:
-"Senhor Augusto, é boa pessoas, boa pessoa mesmo. Às vezes dá uma capulana às mulheres, dá sal aos homens, dá chupa-chupa aos "mirraus" (1), trata bem toda a gente."
Meditou mais um pouco, abanou a cabeça e acrescentou:
-"Mas o filho-da-puta parece "monhé" (2), tonelada dele só tem 750 quilos!"


(1) "Mirrau"-palavra macua que significa "criança", "miúdo".
(2) "Monhé" - Ver definição aqui .


Procurei entre as minhas fotos mas não encontrei nenhuma de um
Thornycroft  da  SAGAL.  Esta,  encontrada  na  net, via Google,
representa um modelo mais recente mas que dá uma ideia
aproximada da forma dos (para mim) míticos camiões.

19.10.11

Esclarecimentos

Tenho recebido de alguns leitores que continuam, heróica e persistentemente, a ler os meus posts, esclarecimentos que não são só úteis, são também reconfortantes.
Assim, de Celestino Gonçalves, já aqui referido e generoso fornecedor de fotografias, recebi a seguinte dica sobre este post: "o que me recordo é que a senhora era viúva de um comerciante, creio que chamado Ventura e depois deste ter falecido ela era como que uma atracção dos camionistas que por ali passavam e se dessedentavam na sua cantina".
Obrigado; de facto, salvo o nome do falecido, era a ideia que eu retinha.
De Barcelos, a minha irmão Maria Helena, àcerca de "Teixeira & Ramalho", diz-me que "o nosso Pai tomou conta das coisa, da loja, do bar e da padaria porque, quando o Santos (Chefe dos Correios e marido da nossa prima Belita Ramalho) foi transferido para Lourenço Marques, a Tia Aninhas foi com ele e o Tio já estava doente".
Sim, lembro-me agora.
O meu primo Aurélio Rocha (Lelo), historiador e professor,, comenta assim: "É, na verdade, uma foto histórica, a primeira vereação de Montepuez. A confirmação do municipalismo foi uma conquista dos moradores que durante anos lutaram por pôr Montepuez no mapa.Além dos nomes que mencionas estão ainda o Dr. Pires (médico), o Villas-Boas e um tal Catuna que creio que era transportador ou coisa assim. O Turita lembra-se dele melhor do que nós, com certeza."
Agradeço a todos, como agradeço quaisquer comentários, sugestões, ajudas e contactos.


Memória Colonial (III)


Há assuntos que se não podem, honestamente, esconder quando se fala de portugueses que conheceram a África colonial.
 Entre eles, o racismo, a guerra e os retornados, aqueles mesmo que o grande mercado da nostalgia de que já aqui falei, tende a minimizar, relativizar, quando não, pura e simplesmente, apagar e negar.
A ficção portuguesa tem tratado o segundo, a guerra, com alguma frequência, embora com qualidade desigual, sendo que alguns grandes autores já se debruçaram sobre ele, como Lobo Antunes, Lídia Jorge ou João de Melo, entre outros.
O racismo, que perpassa, imanente, por toda a literatura de alguma qualidade, sublinhado, edulcorado ou minimizado, não tem sido, que eu conheça, tema central da ficção portuguesa post-colonial.
Restam os retornados. Esta palavra, que designava hipócrita e mentirosamente (uma grande parte dessa onda humana não “retornava” a sítio nenhum, pois nunca aqui vivera), adquiriu, nos anos de brasa de 70, uma tonalidade quase insultuosa. Centenas de milhar de pessoas foram discriminadas, apontadas à execração pública por turbas neo-revolucionárias de lumpen e vira-casacas, em caricaturas cruéis e violentas de ferozes capatazes de chicote em punho, negreiros ávidos e desumanos, votadas ao vexame da “caridade” familiar ou da “ajuda”, esta palavra, pois, sintetiza um drama colectivo de proporções bíblicas. Eles tinham, como diz Lobo Antunes em “Os Cus de Judas”, vivido longe demais, tempo demais para tornar a pertencer aqui.
Tal como no caso do racismo, os retornados surgem, aqui e ali, em apontamentos ou retratos em várias obras contemporâneas.
Em 1981, Guilherme de Melo publicou “A Sombra dos Dias”, os retornados vistos da perspectiva de Moçambique e inaugurou, por assim dizer, o sub-género.
Mas agora, passados 30 e tal anos, com a chegada das crianças que abandonaram as ex-colónias à frente do tsunami da Libertação, processadas as memórias, rompeu-se o dique e os retornados aí estão, caso de estudo, assunto de discussão e, para o que aqui interessa, objecto de ficção.
Mais uma vez (et pour cause) com qualidade, propósito e perspectivas diferentes e, por vezes, opostas mas aí está.
Acaba de ser publicado e ainda não o li, saiu há poucos dias.
Mas o que sei já sobre este livro, vai fazer-me correr, ainda hoje, para uma livraria.
Trata-se de “O Retorno”, de Dulce Maria Cardoso.
Dele disse Pedro Mexia, no “Expresso”: Dulce Maria Cardoso encontra o registo certo em todas as cenas, emocionado e seco, triste e orgulhoso, cheio de culpa e incerteza, de palavras africanas que eram o português angolano, de recordações epocais, como fotonovelas ou marcas de uísque. É essa história visivelmente vivida, sem demagogia nem rasuras, que faz de "O Retorno" um romance há muito aguardado.
Do sentimento de rejeição que ela própria sofreu ao chegar a Portugal, diz a autora: Só o consegui perdoar quando o tornei útil. Ou seja, quando percebi que normalmente as vidas são curtas e tudo nos atrasa. Não é à toa que o protagonista do romance é um adolescente. É porque é na adolescência que nos podemos redefinir. E nas convulsões, nos tempos conturbados estamos outra vez numa espécie de adolescência do país. Os retornados mudaram as coisas. As retornadas com as minissaias e o fumo e isso tudo. Isto aqui era mesmo assustador. Não é brincadeira. Lembro-me de pensar que só havia quatro cores: cinzento, bege, castanho e preto. Nó, os de lá, tínhamos um arco-íris. Parecíamos uns palhaços.

E na mesma entrevista (Revista “LER”-Out.2011), sobre uma reflexão que o romance também faz: (…) como é que lidamos com o colonialismo e com a sua memória. Para nós, como povo, isso é determinante. Crescemos na ideia de que fomos um império. Ainda sou dessa geração. E de repente somo só isto. Como aquelas mulheres que foram muito bonitas e agora é só a descer. Isto deprime. Deprime tanto a mulher bonita como deprime um povo.   

O Retorno
Dulce Maria Cardoso
Ed. Tinta-da-China
 1 ª edição: Outubro de 2011
n.º de páginas: 272

18.10.11

Primeira Comunhão


A foto antiga data do início dos anos cinquenta.
A outra foi captada este ano, durante a minha viagem.
Distingo, entre os catecúmenos, na primeira fila, da esquerda para a direita, o meu primo Beto, minha Irmã, o meu primo Augusto Zé, este que aqui escreve e o meu primo Lelo.
Na segunda fila, reconheço as minhas primas Teresa, quinta a contar da esquerda, Belita e Fernanda.
Entre os adultos, de  
escuro, no lado direito da foto, a minha Tia Mariana e, ao lado, um pouco mais recuado, o meu Tio Júlio Ferreira.
Montepuez era "cosa nostra"...
A  capela não sofreu grandes alterações, como é fácil de constatar.

A minha "madalena de Proust"




O episódio da “madalena” em “Du côté de chez Swann” é o mais emblemático exemplo daquilo que está na base de toda a monumental “À la Recherche du Temps Perdu”, a saber, a digressão por recordações desencadeadas (e encadeadas) involuntariamente por emoções e sentimentos, essa “memória relacional” já várias vezes evocada neste blog.
Recordar-se-ão que é pelo sabor de um pequeno pedaço de um bolo “madalena” ensopado em chá que Marcel Proust leva à boca, que, subitamente, se lhe “revela” uma recordação que nunca mais aparecera no seu consciente, enterrada que estava por outras memórias só aparentemente mais nítidas e põe em movimento as emoções que virão a ser a "Recherche".
Na verdade, todos temos várias “madalenas” - sabores, cores, sons, imagens, odores – que têm esse mágico poder de reconstituir pedaços de vida anterior completos, por vezes incluindo mesmo a sensação geral de bem ou mal-estar.
A minha “madalena” mais evidente é o cheiro de alguns tipos de terra molhada pela chuva.
Pelo que sei, esse cheiro é tantas vezes referido em escritos, conversas ou memórias de pessoas que, outrora, estiveram em África que ele deve, de tão recorrente, ser uma “madalena” quase universal.
Lembro-me de que, há quase vinte anos, recém chegado ao Brasil (que me acolheu, dessa vez, por quase cinco anos), fiz uma viagem pelo interior de Goiás; tinha chovido e o cheiro daquela terra argilosa, encarnada e visivelmente fértil, “atirou-me” imediatamente para Moçambique e para a minha infância. De repente, a paisagem pareceu mudar e vi coisas que antes não tinha visto: vegetação tropical, bananeiras, palmeiras, mangueiras, gente de pele tisnada andando na berma da estrada, cães escanzelados a acompanhar, correndo e ladrando, o automóvel.
A recordação dessa viagem a Goiânia ficou, no meu cérebro contígua, se não confundida, com certas memórias de Montepuez. De tal forma que, de todas as vezes que reencontro essa minha “madalena”, a recordação do Brasil, do automóvel em que viajava, das pessoas que me acompanhavam e do prazer que senti na altura, reaparece misturada a memórias sinestésicas de infância, completas e reconfortantes.
Na minha recente viagem a Moçambique, cheirei o intenso odor de que falo não só em Montepuez mas também noutros locais do país, a começar por Maputo e a acabar em Inhambane. A “madalena” funcionou sempre.

17.10.11

Teixeira & Ramalho


Teixeira & Ramalho era a firma da sociedade dos meus tios António Teixeira e Joaquim Ramalho.
Depois da morte do primeiro, manteve-se na propriedade do outro e mais tarde, por razões que não conheço ou de que não me lembro, passou a ficar sob gerência do meu Pai.
Era, para além do Clube, o local de encontro social; só de homens, entenda-se, que as senhoras não o frequentavam senão para compras, ao contrário do que sucedia com o Clube.                                                                             
A varanda, junto ao bar, era o local do aperitivo de antes do almoço e do drink ao fim da tarde.
Adolescente, aí disputava com o meu primo Augusto José, o saudoso "Pancinhas", renhidas partidas de poker de dados que decidiam quem pagava as contas dos whiskys, bebidos, ainda, em semi-clandestinidade, dado o desagrado parental face à precocidade dos consumidores.
Antes do almoço, o meu tio Aires Rocha, impecavelmente trajado "à colonial", de fato branco, sempre jovial, esperava até ao chamamento do criado que vinha anunciar "senhora 'tá chamar p'ró almoço" para escorropichar o último trago da bebida.
Quando vim para Lisboa para a Faculdade e, dando conteúdo prático à iniciação política bebida em longas conversas com o Dr. Cansado Gonçalves, meu Professor no Liceu de Lourenço Marques, fugaz (mas marcante) Secretário-Geral do PCP e da Drª. Maria da Luz, iniciei entusiásticos contactos com a clandestinidade política.
De férias em Montepuez, pedante e emproado, era frequente que provocasse a ira paterna com tiradas patetas, debitadas no tom rebarbativo de um leninezinho em potência. 
Isso passava-se, habitualmente, à hora do almoço e, em seguida, marchávamos, eu e meu irmão, para a varanda acima perpetuada; atrás, de sorrizinho sarcástico, o meu tio Joaquim Ramalho, assobiava, cheio de gorgeios, a "Internacional"!
Quando isso sucedeu pela primeira vez, imagine-se o meu espanto ao constatar que, mesmo no meio do sertão setentrional de Moçambique, alguém reconhecia o Hino e logo um tio meu!...
Foi assim que fiquei a conhecer o conspícuo "passado revolucionário" do meu tio.

16.10.11

Citação V




O Eu autobiográfico 

"À medida que as experiências vividas são reconstruídas  e representadas,  quer numa reflexão consciente, quer num processamento não-consciente, a sua essência é reavaliada e inevitavelmente reagrupada, modificada ao de leve ou em profundidade, no que respeita à sua composição factual e ao acompanhamento emocional. Durante este processo, as entidades e os acontecimentos adquirem um novo peso emocional. Algumas imagens da recordação ficam pelo caminho na mente, outras são recuperadas e realçadas, outras ainda são combinadas de forma tão habilidosa, quer pelos nossos desejos, quer pelos caprichos do acaso, que acabam por criar cenas novas que nunca realmente existiram. É assim que, à medida que os anos vão passando, a nossa história pessoal é subtilmente reescrita. É por isso que os factos podem adquirir um significado novo e que a música da memória soa hoje diferente que há um ano."

ANTÓNIO DAMÁSIO, "O Livro da Consciência - A Construção do Cérebro Consciente"  
Ed. Círculo dos Leitores, 2010 

14.10.11

Memória Colonial (II)


Ao contrário do filme de Diana Andringa, é difícil classificar o livro de Isabela Figueiredo como “delicado”.
“Caderno de Memórias Coloniais” é um livro autobiográfico, um ajuste de contas com memórias de infância, executado com dureza (por vezes com crueza) e, aparentemente, com uma sinceridade brutal.
A autora saiu da Matola aos 11 anos, deixando aí um pai que adora mas sobre o qual não deixa de lançar o seu olhar desapiedado, reconhecendo o racista primário que assimila à sociedade colonial.

“ Lourenço Marques, na década de 60 e 70 do século passado, era um largo campo de concentração com odor a caril. Em Lourenço Marques, sentávamo-nos numa bela esplanada, de um requintado ou descontraído restaurante, a qualquer hora do dia, a saborear o melhor uísque com soda e gelo, e a debicar camarões, tal como aqui nos sentamos, à saída do emprego, num snack do Cais do Sodré, forrado a azulejos de segunda, engolindo uma imperial e enjoando tremoços. Os criados eram pretos e nós deixávamos-lhes gorjeta se tivessem mostrado os dentes, sido rápidos no serviço e chamado patrão. Digo nós, porque eu estava lá. Nenhum branco gostava de ser servido por outro branco, até porque ambos antecipavam maior gorjeta. O meu pai, a quem coube a missão de electrificar a Lourenço Marques dos anos 60, nunca quis empregados brancos, porque teria de lhes pagar os olhos da cara.”

A raiva prolonga-se, depois, pela condição de “retornada”:

 «A metrópole era suja, feia, pálida, gelada. Os portugueses da metrópole eram pequeninos de ideias, tão pequeninos e estúpidos e atrasados e alcoviteiros. Feios, cheios de cieiro, e pele de galinha, as extremidades do corpo rebentadas de frio e excesso de toucinho com couves. Que triste gente! Divertiam-se a mofar connosco, atirando-nos à cara que estava difícil, pois estava, que aqui não havia pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho, que tínhamos de trabalhar, os preguiçosos de merda, que nunca fizeram a ponta de um corno pela vida, que nunca souberam o que era construir uma vida e perdê-la, os tristes, os pequeninos, os conformados. Sabiam lá eles o que eram os pretos, e o que éramos nós e o que tínhamos acabado de viver, cobardes filhos de uma puta brava.»

A autora estilhaça o mito do não-racismo da colonização portuguesa, desmascara ao lugar comum piedoso que serve para esconjurar passados obscuros e atirar um manto sobre o lado mais obscuro  de muitos percursos de vida.

"Caderno de Memórias Coloniais"
de Isabela Figueiredo
Ed.Angelus Novus