O episódio da “madalena” em “Du côté
de chez Swann” é o mais emblemático exemplo daquilo que está na base de toda a
monumental “À la Recherche
du Temps Perdu”, a saber, a digressão por recordações desencadeadas (e
encadeadas) involuntariamente por emoções e sentimentos, essa “memória
relacional” já várias vezes evocada neste blog.
Recordar-se-ão que é pelo sabor de um
pequeno pedaço de um bolo “madalena” ensopado em chá que Marcel Proust leva à boca, que, subitamente, se lhe “revela”
uma recordação que nunca mais aparecera no seu consciente, enterrada que estava
por outras memórias só aparentemente mais nítidas e põe em movimento as emoções que virão a ser a "Recherche".
Na verdade, todos temos várias
“madalenas” - sabores, cores, sons, imagens, odores – que têm esse mágico poder
de reconstituir pedaços de vida anterior completos, por vezes incluindo mesmo a
sensação geral de bem ou mal-estar.
A minha “madalena” mais evidente é
o cheiro de alguns tipos de terra molhada pela chuva.
Pelo que sei, esse cheiro é
tantas vezes referido em escritos, conversas ou memórias de pessoas que,
outrora, estiveram em África que ele deve, de tão recorrente, ser uma “madalena” quase universal.
Lembro-me de que, há quase vinte
anos, recém chegado ao Brasil (que me acolheu, dessa vez, por quase cinco anos),
fiz uma viagem pelo interior de Goiás; tinha chovido e o cheiro daquela terra argilosa,
encarnada e visivelmente fértil, “atirou-me” imediatamente para Moçambique e
para a minha infância. De repente, a paisagem pareceu mudar e vi coisas que
antes não tinha visto: vegetação tropical, bananeiras, palmeiras, mangueiras,
gente de pele tisnada andando na berma da estrada, cães escanzelados a
acompanhar, correndo e ladrando, o automóvel.
A recordação dessa viagem a Goiânia
ficou, no meu cérebro contígua, se não confundida, com certas memórias de
Montepuez. De tal forma que, de todas as vezes que reencontro essa minha “madalena”,
a recordação do Brasil, do automóvel em que viajava, das pessoas que me
acompanhavam e do prazer que senti na altura, reaparece misturada a memórias
sinestésicas de infância, completas e reconfortantes.
Na minha recente viagem a
Moçambique, cheirei o intenso odor de que falo não só em Montepuez mas também
noutros locais do país, a começar por Maputo e a acabar em Inhambane. A “madalena”
funcionou sempre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário