18.10.11

A minha "madalena de Proust"




O episódio da “madalena” em “Du côté de chez Swann” é o mais emblemático exemplo daquilo que está na base de toda a monumental “À la Recherche du Temps Perdu”, a saber, a digressão por recordações desencadeadas (e encadeadas) involuntariamente por emoções e sentimentos, essa “memória relacional” já várias vezes evocada neste blog.
Recordar-se-ão que é pelo sabor de um pequeno pedaço de um bolo “madalena” ensopado em chá que Marcel Proust leva à boca, que, subitamente, se lhe “revela” uma recordação que nunca mais aparecera no seu consciente, enterrada que estava por outras memórias só aparentemente mais nítidas e põe em movimento as emoções que virão a ser a "Recherche".
Na verdade, todos temos várias “madalenas” - sabores, cores, sons, imagens, odores – que têm esse mágico poder de reconstituir pedaços de vida anterior completos, por vezes incluindo mesmo a sensação geral de bem ou mal-estar.
A minha “madalena” mais evidente é o cheiro de alguns tipos de terra molhada pela chuva.
Pelo que sei, esse cheiro é tantas vezes referido em escritos, conversas ou memórias de pessoas que, outrora, estiveram em África que ele deve, de tão recorrente, ser uma “madalena” quase universal.
Lembro-me de que, há quase vinte anos, recém chegado ao Brasil (que me acolheu, dessa vez, por quase cinco anos), fiz uma viagem pelo interior de Goiás; tinha chovido e o cheiro daquela terra argilosa, encarnada e visivelmente fértil, “atirou-me” imediatamente para Moçambique e para a minha infância. De repente, a paisagem pareceu mudar e vi coisas que antes não tinha visto: vegetação tropical, bananeiras, palmeiras, mangueiras, gente de pele tisnada andando na berma da estrada, cães escanzelados a acompanhar, correndo e ladrando, o automóvel.
A recordação dessa viagem a Goiânia ficou, no meu cérebro contígua, se não confundida, com certas memórias de Montepuez. De tal forma que, de todas as vezes que reencontro essa minha “madalena”, a recordação do Brasil, do automóvel em que viajava, das pessoas que me acompanhavam e do prazer que senti na altura, reaparece misturada a memórias sinestésicas de infância, completas e reconfortantes.
Na minha recente viagem a Moçambique, cheirei o intenso odor de que falo não só em Montepuez mas também noutros locais do país, a começar por Maputo e a acabar em Inhambane. A “madalena” funcionou sempre.

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