Há assuntos que se não podem, honestamente, esconder quando
se fala de portugueses que conheceram a África colonial.
Entre eles, o racismo,
a guerra e os retornados, aqueles mesmo que o grande mercado da nostalgia de
que já aqui falei, tende a minimizar, relativizar, quando não, pura e
simplesmente, apagar e negar.
A ficção portuguesa tem tratado o segundo, a guerra,
com alguma frequência, embora com qualidade desigual, sendo que alguns grandes autores
já se debruçaram sobre ele, como Lobo Antunes, Lídia Jorge ou João de Melo,
entre outros.
O racismo, que perpassa, imanente, por toda a
literatura de alguma qualidade, sublinhado, edulcorado ou minimizado, não tem
sido, que eu conheça, tema central da ficção portuguesa post-colonial.
Restam os retornados. Esta palavra, que designava hipócrita
e mentirosamente (uma grande parte dessa onda humana não “retornava” a sítio
nenhum, pois nunca aqui vivera), adquiriu, nos anos de brasa de 70, uma tonalidade
quase insultuosa. Centenas de milhar de pessoas foram discriminadas, apontadas à
execração pública por turbas neo-revolucionárias de lumpen e vira-casacas, em caricaturas cruéis e violentas de ferozes
capatazes de chicote em punho, negreiros ávidos e desumanos, votadas ao vexame
da “caridade” familiar ou da “ajuda”, esta palavra, pois, sintetiza um drama
colectivo de proporções bíblicas. Eles tinham, como diz Lobo Antunes em “Os Cus
de Judas”, vivido longe demais, tempo demais para tornar a
pertencer aqui.
Tal como no caso do racismo, os retornados surgem, aqui e
ali, em apontamentos ou retratos em várias obras contemporâneas.
Em 1981, Guilherme de Melo publicou “A Sombra dos Dias”, os
retornados vistos da perspectiva de Moçambique e inaugurou, por assim dizer, o
sub-género.
Mas agora, passados 30 e tal anos, com a chegada das
crianças que abandonaram as ex-colónias à frente do tsunami da Libertação, processadas as memórias, rompeu-se o dique e
os retornados aí estão, caso de estudo, assunto de discussão e, para o que aqui
interessa, objecto de ficção.
Mais uma vez (et pour
cause) com qualidade, propósito e perspectivas diferentes e, por vezes,
opostas mas aí está.
Acaba de ser publicado e ainda não o li, saiu há poucos dias.
Mas o que sei já sobre este livro, vai fazer-me correr,
ainda hoje, para uma livraria.
Trata-se de “O Retorno”, de Dulce Maria Cardoso.
Dele disse Pedro Mexia, no “Expresso”: Dulce Maria Cardoso encontra o registo
certo em todas as cenas, emocionado e seco, triste e orgulhoso, cheio de culpa
e incerteza, de palavras africanas que eram o português angolano, de
recordações epocais, como fotonovelas ou marcas de uísque. É essa história
visivelmente vivida, sem demagogia nem rasuras, que faz de "O
Retorno" um romance há muito aguardado.
Do sentimento de rejeição que ela própria sofreu ao chegar a
Portugal, diz a autora: Só o consegui
perdoar quando o tornei útil. Ou seja, quando percebi que normalmente as vidas
são curtas e tudo nos atrasa. Não é à toa que o protagonista do romance é um
adolescente. É porque é na adolescência que nos podemos redefinir. E nas
convulsões, nos tempos conturbados estamos outra vez numa espécie de adolescência
do país. Os retornados mudaram as coisas. As retornadas com as minissaias e o
fumo e isso tudo. Isto aqui era mesmo assustador. Não é brincadeira. Lembro-me
de pensar que só havia quatro cores: cinzento, bege, castanho e preto. Nó, os
de lá, tínhamos um arco-íris. Parecíamos uns palhaços.
E na mesma entrevista (Revista “LER”-Out.2011),
sobre uma reflexão que o romance também faz: (…) como é que lidamos com o colonialismo e com a sua memória. Para nós,
como povo, isso é determinante. Crescemos na ideia de que fomos um império.
Ainda sou dessa geração. E de repente somo só isto. Como aquelas mulheres que
foram muito bonitas e agora é só a descer. Isto deprime. Deprime tanto a mulher
bonita como deprime um povo.
Dulce Maria Cardoso
Ed. Tinta-da-China
n.º de páginas: 272
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