Ao
contrário do filme de Diana Andringa, é difícil classificar o livro de Isabela
Figueiredo como “delicado”.
“Caderno
de Memórias Coloniais” é um livro autobiográfico, um ajuste de contas com
memórias de infância, executado com dureza (por vezes com crueza) e,
aparentemente, com uma sinceridade brutal.
A
autora saiu da Matola aos 11 anos, deixando aí um pai que adora mas sobre o
qual não deixa de lançar o seu olhar desapiedado, reconhecendo o racista
primário que assimila à sociedade colonial.
“ Lourenço Marques, na década de 60 e 70
do século passado, era um largo campo de concentração com odor a caril. Em Lourenço Marques ,
sentávamo-nos numa bela esplanada, de um requintado ou descontraído
restaurante, a qualquer hora do dia, a saborear o melhor uísque com soda e
gelo, e a debicar camarões, tal como aqui nos sentamos, à saída do emprego, num
snack do Cais do Sodré, forrado a azulejos de segunda, engolindo uma imperial e
enjoando tremoços. Os criados eram pretos e nós deixávamos-lhes gorjeta se
tivessem mostrado os dentes, sido rápidos no serviço e chamado patrão. Digo
nós, porque eu estava lá. Nenhum branco gostava de ser servido por outro
branco, até porque ambos antecipavam maior gorjeta. O meu pai, a quem coube a
missão de electrificar a Lourenço Marques dos anos 60, nunca quis empregados
brancos, porque teria de lhes pagar os olhos da cara.”
A
raiva prolonga-se, depois, pela condição de “retornada”:
«A metrópole era suja, feia, pálida, gelada. Os portugueses da
metrópole eram pequeninos de ideias, tão pequeninos e estúpidos e atrasados e
alcoviteiros. Feios, cheios de cieiro, e pele de galinha, as extremidades do
corpo rebentadas de frio e excesso de toucinho com couves. Que triste gente!
Divertiam-se a mofar connosco, atirando-nos à cara que estava difícil, pois
estava, que aqui não havia pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho, que
tínhamos de trabalhar, os preguiçosos de merda, que nunca fizeram a ponta de um
corno pela vida, que nunca souberam o que era construir uma vida e perdê-la, os
tristes, os pequeninos, os conformados. Sabiam lá eles o que eram os pretos, e
o que éramos nós e o que tínhamos acabado de viver, cobardes filhos de uma puta
brava.»
A autora estilhaça o mito do
não-racismo da colonização portuguesa, desmascara ao lugar comum piedoso que
serve para esconjurar passados obscuros e atirar um manto sobre o lado mais
obscuro de muitos percursos de vida.
"Caderno de Memórias Coloniais"
de Isabela Figueiredo
Ed.Angelus Novus
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