14.10.11

Memória Colonial (II)


Ao contrário do filme de Diana Andringa, é difícil classificar o livro de Isabela Figueiredo como “delicado”.
“Caderno de Memórias Coloniais” é um livro autobiográfico, um ajuste de contas com memórias de infância, executado com dureza (por vezes com crueza) e, aparentemente, com uma sinceridade brutal.
A autora saiu da Matola aos 11 anos, deixando aí um pai que adora mas sobre o qual não deixa de lançar o seu olhar desapiedado, reconhecendo o racista primário que assimila à sociedade colonial.

“ Lourenço Marques, na década de 60 e 70 do século passado, era um largo campo de concentração com odor a caril. Em Lourenço Marques, sentávamo-nos numa bela esplanada, de um requintado ou descontraído restaurante, a qualquer hora do dia, a saborear o melhor uísque com soda e gelo, e a debicar camarões, tal como aqui nos sentamos, à saída do emprego, num snack do Cais do Sodré, forrado a azulejos de segunda, engolindo uma imperial e enjoando tremoços. Os criados eram pretos e nós deixávamos-lhes gorjeta se tivessem mostrado os dentes, sido rápidos no serviço e chamado patrão. Digo nós, porque eu estava lá. Nenhum branco gostava de ser servido por outro branco, até porque ambos antecipavam maior gorjeta. O meu pai, a quem coube a missão de electrificar a Lourenço Marques dos anos 60, nunca quis empregados brancos, porque teria de lhes pagar os olhos da cara.”

A raiva prolonga-se, depois, pela condição de “retornada”:

 «A metrópole era suja, feia, pálida, gelada. Os portugueses da metrópole eram pequeninos de ideias, tão pequeninos e estúpidos e atrasados e alcoviteiros. Feios, cheios de cieiro, e pele de galinha, as extremidades do corpo rebentadas de frio e excesso de toucinho com couves. Que triste gente! Divertiam-se a mofar connosco, atirando-nos à cara que estava difícil, pois estava, que aqui não havia pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho, que tínhamos de trabalhar, os preguiçosos de merda, que nunca fizeram a ponta de um corno pela vida, que nunca souberam o que era construir uma vida e perdê-la, os tristes, os pequeninos, os conformados. Sabiam lá eles o que eram os pretos, e o que éramos nós e o que tínhamos acabado de viver, cobardes filhos de uma puta brava.»

A autora estilhaça o mito do não-racismo da colonização portuguesa, desmascara ao lugar comum piedoso que serve para esconjurar passados obscuros e atirar um manto sobre o lado mais obscuro  de muitos percursos de vida.

"Caderno de Memórias Coloniais"
de Isabela Figueiredo
Ed.Angelus Novus

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