O actual Secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, nasceu em Vila Nova de Foz Côa e nunca, ao que parece, viveu permanentemente em Lourenço Marques ou em qualquer outro ponto de Moçambique.
Segundo as suas próprias palavras, antes de escrever o livro de que aqui falo, só visitou Moçambique cinco vezes, quatro delas para prepara a obra.
E, no entanto, quem ler o seu romance ( policial? ) "Lourenço Marques" (Edições ASA, 2002) e não conhecer esse facto ou a biografia do autor, pensará que se trata de alguém com fortíssimas ligações à cidade que dá o nome ao livro e, certamente, de alguém que aí mergulhou fundo na vida, durante os anos sessenta e setenta.
Se esse leitor desprevenido tiver conhecido a Lourenço Marques dessa época, encontrará tantas referências familiares, tantos nomes de pessoas e locais, tantas expressões que não duvidará estar em presença de alguém que talvez tenha conhecido e que se abriga, agora, atrás de um pseudónimo.
Como já disse, não é o caso.
O livro parte de um enredo policial, género muito utilizado pelo autor, mas é na verdade, um exercício de "memória reconstruída" (de que já tenho falado neste blog) pelo personagem principal, Miguel, que volta, depois de vinte anos, a Moçambique, numa demanda quase mística de uma mulher que conhecera na "antiga" Lourenço Marques e que procura por todo o país (Maputo, Beira, Pemba, Ilha de Moçambique, Nampula, Lichinga...) e que é na verdade, a peregrinação aos locais da memória.
É claro, "o poeta é um fingidor" e esta nostalgia que Miguel sente não é a do autor, como não são do autor as recordações plasmadas no texto; esta nostalgia, estas recordações, são a busca de uma "cidade perdida" e um pouco mítica, "a Cidade das Acácias" envolta no "Azul do Índico" ( título da edição brasileira), uma cidade localizada num país que só sobrevive na memória dos que a (e lá) viveram.
Para escrever este livro, Francisco José Viegas deve ter feito intensíssimas e exaustivas pesquisas, consultado muitos documentos, ouvido muitas memórias.
Percorrem o livro pormenores como os nomes da equipa completa de basquete do Sporting de Lourenço Marques, de locutoras do Rádio Clube de Moçambique, do famigerado "Zeca Russo", locais como o Piri-Piri, a Cristal, o Hotel Cardoso, expressões idiomáticas que são habituais, como "maningue" ou "kanimambo" mas também outras como "canganhiça", "xicuembo" ou "uma quinhenta", que já o são menos
Leiam-se, por exemplo, esta passagens (de que consta o nome de Cansado Gonçalves que eu já tinha citado AQUI;
(...) tenho saudades de Quelimane, de Mocuba, de Gurué, que nomes eu te atirava à cara, o nome dos miúdos que andaram no Liceu Pêro de Anaia, na Beira, as histórias das raparigas da Bartolomeu Dias, em frente às Torres Vermelhas (...) um abraço maningue apertado, gente chunguila, sem canganhiça, que nomes eu te atirava à cara, Venda. Tchova, tchova! Tchova a memória. Os nomes do professor Pinto dos Santos, Heliodoro Frescata, Cansado Gonçalves, Domitila Apolinário, Elisa Gouveia, Prata Dias, Zeca Afonso, o advogado Barradas a perseguir os fiscais da câmara e da polícia por causa das multas de estacionamento que ele julgava ilegais.
E, contudo, nesta memória reconstruída de Lourenço Marques não perpassa qualquer simpatia pelos "bons velhos tempos" ou branqueamento da sociedade colonial, ainda que se diga, a certa altura que a cidade agora é suja, "com merda onde deviam estar flores", consequência nefasta (entre outras) da guerra civil e da catastrófica experiência "socialista".
Francisco José Viegas escreve bem, escorreitamente. A história policial que serve de enredo ao romance é interessante e prende a atenção do leitor.
Mas...vou arriscar, talvez sem razão: só sentirá plenamente o prazer da leitura deste livro quem tiver vivido, ainda que por interposta pessoa, em Moçambique ou em Lourenço Marques ou mesmo em Maputo
Francisco José Viegas
"Lourenço Marques"
Edições ASA (2002)
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