Se destacamos essa característica flutuante, mutável, da
memória, tanto individual quanto coletiva, devemos lembrar também que na
maioria das memórias existem marcos ou pontos relativamente invariantes,
imutáveis. Todos os que já realizaram entrevistas de históriade vida percebem
que no decorrer de uma entrevista muito longa, em que a ordem cronológica não
está sendo necessariamente obedecida, em que os entrevistados voltam várias
vezes aos mesmos acontecimentos, há nessas voltas a determinados períodos da
vida, ou a certos fatos, algo de invariante.
É como se, numa história de vida individual - mas isso
acontecei gualmente em memórias construídas coletivamente houvesse elementos
irredutíveis, em que
o trabalho de solidificação da memória foi tão importante
que impossibilitou a ocorrência de mudanças.
Em certo sentido, determinado número de elementos tornam-se
realidade, passam a fazer parte da própria essência da pessoa, muito embora
outros tantos acontecimentos e fatos possam se modificarem função dos
interlocutores, ou em função do movimento da fala.
Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória,
individual ou coletiva?
Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos
pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de
"vividos por tabela", ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou
pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer.
(...)
Além desses acontecimentos, a memória é constituída por pessoas,
personagens. Aqui também podemos aplicar o mesmo esquema, falar de
personagens realmente encontradas no decorrer da vida, de personagens
freqüentadas por tabela, indiretamente, mas que, por assim dizer, se
transformaram quase que em conhecidas, e ainda de personagens que não
pertenceram necessariamente ao espaço-tempo da pessoa. Por
exemplo, no caso da França, não é preciso ter vivido na época do general De
Gaulle para senti-lo como um contemporâneo.
Além dos acontecimentos e das personagens, podemos
finalmente arrolar os lugares.
Existem lugares da memória, lugares particularmente ligados
a uma lembrança, que pode ser uma
lembrança pessoal, mas também pode não ter apoio no tempo cronológico.
Pode ser, por
exemplo, um lugar de férias na infância, que permaneceu muito forte na memória
da pessoa, muito marcante, independentemente da data real em que a vivência se
deu. Na memória mais pública, nos aspectos mais públicos da pessoa, pode haver
lugares de apoio da memória, que são os lugares de comemoração.
MEMÓRIA E IDENTIDADE SOCIAL
Michael Pollak (1987)
Nenhum comentário:
Postar um comentário